terça-feira, 9 de março de 2010

Desabafo

Estou indignado com a proliferação de "remasterizações"/"remisturas" mal feitas de música bem feita. Basta de sobrevalorizar o som em vez da música! Basta da fobia doentia ao ruído de fundo; basta do vício da potência e do volume; basta da mania do tem-que-soar-moderno; basta da mutilação estética; basta de tomar gato por lebre!
O que se passa com os ouvidos e o sentido estético musical dos profissionais de estúdio? Parece que os "engenheiros de som" cada vez gostam mais de sonoplastia e menos de música.

Tropeçamos constantemente em reedições especiais de todo o tipo de gravações, desde música gravada no início do século XX até registos feitos há meia-dúzia de anos, cada uma delas apregoando melhorias de som por meio de remasterização ou remistura. Aliás, é praticamente assumido à partida que qualquer nova intervenção no som de uma gravação antiga é uma boa ideia e representa uma valorização da música em questão. Que absurdo! Se uma mulher se maquilhar, tanto pode realçar a sua beleza natural como ofuscá-la por completo. Depende, claro, de como se maquilha. Uma maquilhagem inadequada ou aplicada em excesso corre o risco de realçar-se a si mesma, ofuscando aquilo que deveria realçar subtilmente: a beleza natural de quem a usa. A tecnologia de edição áudio é como uma "maquilhagem" sonora: tanto pode potenciar uma audição mais plena do conteúdo musical como pode distorcer esse conteúdo e condicionar a apreciação. Depende de quem faz o tratamento de som e sobretudo de como o faz. O domínio da tecnologia não serve para nada se não se tiver em mente o fim a que se destina, tal como o domínio da técnica vocal/instrumental é igualmente supérfluo sem a finalidade de uma expressão musical. Por muito decisiva que seja no resultado, técnica é sobretudo um meio para atingir um fim. Daí não me demovo.

O problema é que alguns ficam tão assoberbados com o que sabem fazer que parecem perder a noção de para que serve a sua arte. Tantas vezes me acontece ouvir uma reedição de uma gravação que peca por excesso de tratamento! O ouvido de um técnico de gravação musical não pode perder de vista que o som que grava constitui música, e que a música é uma expressão artística com critérios estéticos que diferem consoante o estilo musical em questão. Infelizmente, vemos em muitos casos que a sensibilidade musical do técnico deixa muito a desejar. Há alguns aspectos da técnica de edição áudio que parecem obcecar quem a pratica, independentemente da sua relevância na fruição da música contida nas gravações.


-- 1. A prevenção da “hissite”? --

A primeira das manias é a caça ao ruído de fundo (o chamado “hiss”). Pelos exageros que se ouvem por aí, até parece que corremos o risco de contrair uma doença séria se nos expusermos à mínima quantidade de ruído de fundo quando ouvimos uma gravação do passado. Depois o que acontece é que se aplicam filtros para retirar esse ruído, mas de tal maneira que, em muitos casos, além de retirarem o ruído retiram também frequências que fazem parte da música, do som natural dos instrumentos, e/ou das salas.
Um exemplo claro: a ópera “Tristão e Isolda” de Wagner, gravada em 1952 sob a batuta do maestro Wilhelm Furtwängler. Gosto muito da interpretação em questão. Há uns anos paguei cerca de 40 euros por uma edição da EMI (CD quádruplo, na série “Great Recordings of the Century”), alegadamente com melhoramentos áudio em relação à edição anterior. Fui a ouvir e qualquer coisa me pareceu estranho, parecia que o som estava “asfixiado”, que não tinha uma “respiração” natural. Quando ouvi a edição baratíssima (cerca de 20 euros também por 4 CDs) da Naxos Historical (série Naxos de gravações históricas) percebi de vez: o técnico da Naxos fez um excelente trabalho, deixando um pouco mais de ruído de fundo, mas possibilitando assim a percepção mais próxima do som real da orquestra e dos cantores. Outro caso, simplesmente inaudível: o disco “1” dos Beatles, que por acaso é o mais vendido de sempre. Está tudo tão espremido em termos de ruído (e, consequentemente, ambiência) que a sensação é de que os instrumentos estão todos abafados de uma forma esquisitíssima. Bolas! Qual é o mal de ouvir um ruidozinho lá no fundo, especialmente quando a música que se lhe sobrepõe é boa?


-- 2. Dissecação da obra gravada

Fazem muito furor as gravações que nos permitem ouvir detalhes. Se for reeditado e remisturado um disco qualquer e houver detalhes que sobressaem agora e que não sobressaíam na versão original, a reacção de uma grande parcela do público é um gigantesco “uau”. Compreendo isso quando se trate claramente de dificuldades técnicas da gravação original que impedissem uma transmissão correcta do resultado musical na gravação. O que não compreendo é porque é que detalhe acrescentado é necessariamente uma melhoria na óptica de muita gente. Um exemplo claro: as recentes remasterizações dos discos dos Genesis de 1970-75 (da era com Peter Gabriel). Os Genesis são dos mais dedicados exploradores de subtilezas texturais e de dinâmica da história do rock. Muitas das músicas dessa fase dos Genesis estão impregnadas de detalhezinhos de arranjo e textura subtilmente introduzidos na música. Alguns dos momentos mais interessantes e refinados destes discos (“Trespass” (1970), “Nursery Cryme” (1971), “Foxtrot” (1972), “Selling England by the Pound” (1973) e “The Lamb Lies Down on Broadway” (1974)) são precisamente aqueles em que se ouve entrar, bem lá ao fundo, um novo acompanhamento de guitarra, ou um contraponto discreto. Ouçam-se as edições destes discos feitas em 1994 (Definitive Edition Remaster) para se perceber do que falo. Se a mistura for toda reajustada para realçar estes detalhes, pondo-os com toda a nitidez ao pé dos nossos ouvidos, perde-se o encanto das mudanças subtis e delicadas que quem fez esta música refinou. Nas novas edições destes discos, ouço os detalhes todos com demasiada nitidez. Não há nada de subtil em termos de áudio. Que decepção! É certo que as edições de 1994 pecam talvez por um certo excesso de redução de ruído. Mas ao menos a ideia estética musical está lá. É que remisturar uma gravação com o básico raciocínio de querer dar a ouvir tudo sem exigir o esforço mínimo de atenção é um potencial atentado à arte, não se adequa a qualquer tipo de música.

Seria uma sensação muito estranha ver a Gioconda e ter imediatamente a noção de todas as pinceladas que estiveram na origem do quadro. Richard Strauss, grande compositor e maestro, irritou-se certa vez com os músicos da orquestra que dirigia, advertindo qualquer coisa como: “Meus senhores, estou a ouvir todas as notas. Dêem-me uma _impressão_ da música!”. Eu também não quero ouvir uma partitura, mas sim o resultado final que motivou a sua escrita. Da mesma forma, uma coisa que foi misturada com todo o cuidado para obedecer a uma ideia musical e que foi desde sempre eficaz não se pode reconfigurar radicalmente de qualquer maneira. Aquilo que é detalhe, detalhe permaneça. Aquilo que é assumidamente cenário, perspectiva, espaço, assim tem de continuar. Pobres Genesis, grupo refinadíssimo com o tratamento mais abrutalhado possível. Pobres tantos outros...


-- 3. A estética do forte-e-feio

A pior de todas as manias, para mim, é a de amplificar todos os elementos da música, desproporcionadamente, e comprimi-los todos enchouriçados num volume intenso para a música “soar mais alto”. São as chamadas “loudness wars”. O que acontece é que, com este processo, aniquila-se a dinâmica natural da música e acaba por ficar tudo a soar intenso. Evidentemente que isto não é feito a cem por cento da extensão possível (mal de todos nós se o fosse!) e que as diferenças tímbricas dos instrumentos entre uma dinâmica intensa e uma suave permitem que a nossa cabeça faça uma espécie de “ajuste” psicológico e acabamos por perceber que, mesmo não havendo grandes nuances dinâmicas em termos de áudio, há na música essa intenção. Mas porque não manter as dinâmicas originais? Além de mais correcto é mais fácil para quem faz e para quem ouve! Ouvir um disco inteiro submetido a uma compressão exagerada proporciona um desconforto, um cansaço difícil de descrever, mas fácil de atingir. Caso conhecido: os discos recentemente remasterizados em Stereo dos Beatles. A compressão não foi usada escandalosamente, mas é o suficiente para retirar gama dinâmica. Justiça seja feita, apesar disso, ao cuidado dos técnicos em não retirar ruído de fundo desnecessariamente, em não remisturar as músicas e em preservar o mais fielmente possível os timbres. Caso flagrante: as reedições já mencionados dos Genesis. Soa tudo bruto. Compare-se com as edições anteriores e percebe-se que tudo está exagerado, infelizmente ao ponto de muitas vezes soar tudo forte. As subtilezas de textura e de dinâmica que fizeram os meus encantos de uma forma decisiva há uns anos são drasticamente desprezadas nesta nova encarnação. Maldita falta de sensibilidade!

Há quem não resista mesmo à ideia de que soar mais alto é bom, seja qual for o preço a pagar. Mas soar mais alto para quê? Todos sabemos utilizar um botão de volume, e é muito mais fácil subir o volume da aparelhagem e deixar o disco a tocar mais forte do que ter que lidar com uma maldita remasterização de uma gravação comprimida até ao tutano e ter de andar com o botão para trás e para a frente para tentar ter uma ideia de como soaria se o áudio respeitasse a dinâmica. Isto é claramente uma consequência da estética de produção do rock, em que a agressividade e potência do som fazem parte do próprio conceito estético da música. Mas não se pode aplicar esse conceito em tudo o que é música. Nem sequer em tudo o que é rock. Uma coisa é um disco de Skunk Anansie, outra coisa é um disco de Genesis, outra é um disco dos Beatles, outra um disco de Dire Straits. Tudo isto cabe no rock e não há dois destes grupos que se possam imaginar com um som em comum, nem em termos intrumentais nem em termos de produção. Compreendo que num disco de Skunk Anansie, por exemplo, haja recurso a este processo. Faz parte da intenção musical aquela sensação de “slap you in the face”. Se eu não faria isso num disco meu, não é porque isso seja à partida mau, mas porque eu tenho uma direcção musical diferente da deles. E até gostei de algumas coisas deles. Ainda bem que há compressores áudio que podem ser utilizados bem na música que a eles se presta. Mas que se tenha o cuidado de perceber se a música precisa disso! Mas não quero que me dêem estalos na cara por tudo e por nada! Não quero ser agredido com uma guitarra dedilhada delicadamente pelo Steve Hackett, pelo James Taylor ou pelo João Gilberto (céus!!). Não quero ouvir a bateria de Phil Collins, que sempre foi plena de alegria e vitalidade, a soar como uma metralhadora atroz. Não quero sentir que um cantor que emitiu uma voz suave no estúdio me está agora a levantar a voz (que falta de respeito!) por dois altifalantes.


-- 4. A tentação de soar moderno

Muitas vezes estes disparates são feitos com a intenção de fazer uma música soar mais moderna, de a “actualizar”. Sobre isso digo pouco que é muito: a música que é realmente boa soa actual se para isso lhe abrirmos o espírito. Não vejo interesse em tentar-se convencer o ouvinte de que os Beatles talvez não tenham gravado o primeiro disco em 1962 e o último em 1969. Seja qual for a gravação de que se fale, por muito que se faça ao som, os ingredientes da música não deixam ninguém enganado. Os Beatles soam dos anos 60, e é isso que faz deles fantásticos: é que eles fizeram aquelas coisas que hoje são vulgares nos anos 60, quando não o eram. É muitas vezes o diálogo entre o artista e a sua época que torna a música fascinante. Ainda bem que sei que os Beatles são dos anos 60, porque se eles fossem de agora e a música fosse aquela, não era fácil entender o que queriam eles. Deixem a música soar àquilo que é. Deixem-me perceber que os Genesis são um grupo progressista dos anos 70, e não um grupo anacrónico dos anos 2000. Como diria o Sérgio Godinho, “pode alguém ser quem não é”?


-- 5. Marketing a todo o custo

O problema passa também, evidentemente, por quem contrata o responsável pelo resultado, e pelas intenções com que o faz. As próprias editoras discográficas também têm a necessidade de convencer o consumidor de que vale a pena comprar uma nova edição daquele disco que já tem tantos anos porque agora está mais actualizado que nunca. Mas se actualização começar a interferir com a estética, como é cada vez mais frequente, então está o caldo entornado... Os responsáveis das editoras discográficas confundem demasiadas vezes o comércio da obra de arte com a arte do comércio.


-- 6. O snobismo do som

Aparecem por aí uns carapaus de corrida que se dizem audiófilos achando que isso lhes dá um status excepcional entre os apreciadores de música. E de facto muitas vezes dá mesmo: dá-lhes a excepção de serem quem mais gasta dinheiro em material, sendo ao mesmo tempo quem ouve menos música. Nada de confusões: há audiófilos a sério, aqueles que se dedicam a aprimorar o som, a reprodução electrónica das gravações, de forma a torná-la o mais plena e próxima do resultado musical pretendido. Mas aqueles de que falo agora são os audiófilos de meia-tigela. São como a personagem de “Arte” de Yasmina Reza que compra o quadro branco para se armar em intelectual. São aqueles que são capazes de gastar fortunas num equipamento que os seus ouvidos são incapazes de distinguir do equipamento anterior, mas que eles acreditam ser muito melhor para ouvir música. Esses gostam mais de som do que de música. Os técnicos de estúdio não deveriam ser aceites sofrendo desse mal. Se é música o que faz o sinal áudio que lhes é confiado, é música que lhes tem que ser exigida.

(Obs.: a propósito dos audiófilos de província, ainda há aqueles que acham que uma aparelhagem boa é a que dá espectáculo, e reforçam os graves no amplificador completamente a despropósito para impressionar as visitas. Esses gostam mais de um barulho descerebrado do que de som ou de música.)


Conclusão

Já dizia sensatamente George Martin (a propósito do que considera importante num bom produtor), “all you need is ears”. Abaixo os técnicos que prescindem dos seus ouvidos em favor das artimanhas com que deseducam os nossos. Victor Hugo sabia o que dizia quando disse: “a música é o barulho que pensa”. Portanto, música que não pensa é simplesmente barulho. Eu sou perdidamente apaixonado por música, mas odeio barulho.

E agora, ó técnicos de plástico, ó audiófilos da treta: pouco barulho, que eu quero ouvir música!



(Desabafado entre 16 de Fevereiro e 9 de Março de 2010)

2 comentários:

Grazi disse...

Olá,
sendo eu apenas uma apreciadora de música (lê-se completamente leiga), não entendia meu incômodo ao ouvir certas versões mais "modernas" de muitas músicas.
Seu desabafo me ajudou a entender o porquê.
Em especial, que precisamos abrir o espírito para entender a música, juntamente com o contexto em que ela foi criada.
Muito bom!

Seu Emicles disse...

Olá Grazi! Obrigado! :)

Quando falas de incómodo a ouvir versões mais modernas de muitas músicas, não tenho a certeza de estares a referir-te ao mesmo problema que eu.

Eu refiro-me a reedições de discos passados, com a mesma gravação, mas apenas re-tratados em termos de som, de áudio propriamente dito. Não me refiro aos casos em que se pega numa música antiga e se lhe dá outro arranjo, assumidamente outra abordagem do ponto de vista musical. Por exemplo não cabe aqui a regravação que os Pink Floyd fizeram do "The Dark Side of the Moon" há uns anos atrás (nessa altura, eles voltaram a tocar no estúdio toda a música do disco e gravaram-na; o que saiu é parecidíssimo com o disco original, mas são mesmo outras gravações, é outra performance da mesma música). Também não é o caso da recente versão da canção "Fame", por exemplo, que está feita mesmo com outros instrumentos, outro arranjo, e mesmo com um ritmo um pouco diferente. Isso já nada tem a ver com som ou áudio, tem mesmo a ver, antes de tudo, com a própria forma de arranjar, tocar e cantar. Nesses casos a nossa apreciação depende mesmo de o que é feito a nível musical pelos próprios músicos.

No meu desabafo, refiro-me a coisas que são feitas a nível de som pelos técnicos. Por exemplo às reedições dos Beatles. Naquele disco "1", que reúne algumas das canções de maior sucesso do grupo, as gravações são mesmo as das fitas originais, que deram origem aos LPs e singles dos anos 60, só que os técnicos de som da EMI deram-lhes algum tratamento de som. Como eles exageraram na quantidade de tratamento que aplicaram às gravações, a sensação é de algum "asfixiamento" sonoro, parece que não se ouve a ressonância natural dos instrumentos e das vozes.

Seja como for, estejamos a falar do mesmo problema ou não, fico contente por teres gostado do meu texto, e por valorizares a abertura de espírito para a música de outras épocas e seu contexto, que lhe é essencial. Obrigado!